Ontem, 3 de Dezembro de 2025, a poeira vermelha de Inhassoro testemunhou o aperto de mão entre o Presidente Daniel Chapo e o Presidente Cyril Ramaphosa, sob a sombra industrial da nova Fábrica de Processamento Integrado (IPF). É o selo de uma transformação tectónica na economia política da África Austral. Ao inaugurarem esta infraestrutura, Moçambique está apenas a abrir torneiras de gás; está a fechar a porta a um ciclo histórico de subserviência extractiva e a inaugurar a era da soberania energética.
Durante décadas, a relação energética entre Moçambique e a África do Sul foi definida por uma assimetria confrangedora: o gás de Pande e Temane fluía para sul, alimentando as fornalhas industriais de Secunda e iluminando o skyline de Joanesburgo, enquanto as famílias moçambicanas, donas do recurso, cozinhavam o seu jantar sobre a fumaça tóxica do carvão vegetal. Este modelo, vestígio de um colonialismo económico subtil, ruiu ontem.
A presença de Cyril Ramaphosa em Inhambane deve ser lida com a frieza de um analista de xadrez. Não se trata apenas de boa vizinhança; trata-se de sobrevivência estratégica. A África do Sul enfrenta o que os seus próprios especialistas apelidam de “Gas Cliff” – o precipício do gás. Com o declínio dos campos originais operados sob o antigo regime de PPA (Acordo de Produção de Petróleo), a indústria sul-africana olha para Moçambique não mais como um “quintal” de recursos baratos, mas como o balão de oxigénio indispensável para a sua própria estabilidade económica.
Ao inaugurar uma fábrica que retém o gás em território nacional para produzir 30.000 toneladas anuais de Gás de Petróleo Liquefeito (GPL), Moçambique envia uma mensagem clara: a caridade energética acabou. A prioridade é agora, inequivocamente, o mercado interno. A diplomacia evoluiu. Se outrora Moçambique pedia investimentos, hoje a África do Sul pede moléculas. Esta inversão da balança de poder confere ao Presidente Daniel Chapo uma alavanca negocial sem precedentes na região. A interdependência mantém-se, mas os termos de troca mudaram radicalmente em nosso benefício também.
Da Retórica à Industrialização: O Significado dos 70%
Os números, por vezes áridos, contam aqui uma história de libertação nacional. A nova unidade da Sasol, operada sob o progressista Contrato de Partilha de Produção (PSA), vai substituir entre 64% a 70% das importações de gás de cozinha.
Paremos para reflectir sobre o impacto disto. Até ontem, cada botija de gás comprada em Maputo ou na Beira arrastava consigo o peso de custos logísticos internacionais, fretes marítimos e a volatilidade do dólar, drenando as nossas divisas para o estrangeiro. A partir de hoje, a molécula que ferve a água e cozinha a xima é moçambicana, extraída do solo moçambicano, processada por engenheiros moçambicanos e transportada por camionistas moçambicanos.
Isto é a verdadeira independência económica. Ao internalizar esta cadeia de valor, estancamos a hemorragia financeira e criamos um escudo contra os choques externos. Mais do que isso: estamos a criar uma indústria. O petróleo leve, que hoje também começa a ser exportado (4.000 barris/dia), e o gás que alimentará os 450 MW da Central Térmica de Temane, não são meras commodities; são os alicerces de uma industrialização que tardava a chegar.
Há, contudo, uma dimensão moral neste projecto que transcende a geopolítica. O “gás de cozinha” não é um luxo; é uma questão de dignidade humana e saúde pública. Num país onde a biomassa ainda reina, condenando as nossas florestas ao desaparecimento e os pulmões das nossas mães e filhas à doença, a massificação do GPL é um imperativo civilizacional. A meta de levar este gás a 4 milhões de pessoas até 2030 deixa de ser uma promessa vaga para se tornar uma possibilidade logística concreta.
A soberania mede-se também nisto: na capacidade de um Estado garantir que os seus cidadãos não tenham de destruir o seu habitat para alimentar as suas famílias. O gás de Inhassoro é, assim, um combustível de transição no sentido mais nobre do termo: transita-nos da pobreza energética para a modernidade, e da devastação ambiental para a sustentabilidade.
Mas não nos iludamos, porém, com o brilho do aço inoxidável inaugurado ontem. A “maldição dos recursos” é um espectro que ronda sempre. A participação de empresas moçambicanas no projecto – com cerca de 211 milhões de dólares em contractos adjudicados a nacionais – é um sinal positivo, mas deve ser apenas o começo. É imperativo que a riqueza gerada em Inhassoro não fique retida em circuitos de elite, mas que se derrame sobre a economia real, capacitando as PMEs e gerando emprego qualificado.
O Presidente Chapo tem nas mãos a responsabilidade de garantir que a regulação deste novo mercado seja férrea. O monopólio da importação não pode ser substituído por um monopólio de produção que asfixie o consumidor. A Autoridade Reguladora de Energia (ARENE) terá de ser vigilante para que a redução dos custos de importação se traduza, de facto, numa factura mais leve para o cidadão comum.
O dia 3 de Dezembro de 2025 ficará na história não porque dois presidentes sorriram para as câmaras, mas porque Moçambique decidiu, finalmente, ocupar o lugar que a geografia e a geologia lhe destinaram. Deixámos de ser um “corredor” por onde a riqueza passa; passámos a ser o destino onde a riqueza se transforma.
A fábrica de Inhassoro é a prova de conceito para o que aí vem na Bacia do Rovuma. Se conseguimos fazer isto com os campos maduros do Sul, o que não faremos com os gigantes do Norte? Hoje a mas a audácia de acreditar que Moçambique pode ser, e será, uma potência industrial. A chama que se acende em Inhassoro não é apenas azul. É a cor da nossa soberania.